Tal como nas outras ilhas, também na Graciosa o povo mantém bem viva a devoção ao Divino Espírito Santo.
O cumprimento de votos e promessas à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade começou, também nesta ilha, por estar intimamente associado ao temor da força dos elementos: o isolamento físico, as tempestades, os sismos, as línguas de fogo dos vulcões e outras calamidades... Não compreendendo os fenómenos naturais, era ao Espírito Santo que as nossas gentes, em fervorosa prece, recorriam para acalmar tamanhos castigos...
Festa do povo e para o povo, o Espírito Santo decorre desde o Domingo da Pascoela até ao Domingo da Trindade, e ainda depois deste pelo Verão adiante. Associadas a este culto temos a folga (festa profana) e a folia (festa religiosa) que se complementam e interpenetram. A folga é um sarau dançante em que homens e mulheres, rapazes e raparigas cantam e bailam danças populares. A folia é o tempo das coroações, dos bodos e arraiais em que tomam parte os foliões que cantam loas ao Divino.
Embora a origem dos foliões seja incerta, tornaram-se nos Açores inseparáveis das Festas do Espírito Santo, tal como no presente são as filarmónicas que os substituíram, ou coabitam com eles no cortejo processional (desde finais do século XIX, inícios do século XX).
Os foliões são indivíduos encarregados de anunciar, dirigir e orientar todas as cerimónias inerentes às festividades do Espírito Santo. Na fase primitiva desta festa, eles cantavam e dançavam ao mesmo tempo, quer nos cortejos, quer ainda dentro das igrejas, de mistura com as cerimónias do culto - práticas que viriam a ser proibidas em 1559 pelas constituições do Bispado de Angra. Proibidas mas nem sempre respeitadas. Por exemplo: ainda hoje, na ilha de S. Jorge, há foliões que cantam e dançam com rosquilhas na mão...
Nos tempos que correm, a acção dos foliões limita-se quase exclusivamente a acompanhar as Coroações e Mudanças de Coroa e a dirigir a Função em casa do Imperador. Através de quadras, entoam loas e cânticos, evocando santos, pedindo pelos irmãos do Império (os vivos e os defuntos), saudando os donos da casa que pagam promessas. Antes da refeição (que consiste nas afamadas sopas do Espírito Santo, carne e arroz doce, com "vinho de cheiro" a acompanhar), eles cantam às mesas e, no fim daquela, saúdam os presentes e as cozinheiras ou mestras das sopas.
Solenes e graves, estes verdadeiros "mestres de cerimónia" diferenciam-se de ilha para ilha, em termos de indumentária e cânticos. Na ilha Graciosa vestem opa de chita vermelha com estamparia de flores amarelas, largo cabeção sobre os ombros, gola e punhos brancos; em tempos mais recuados usavam, na cabeça, um lenço amarrado, à laia de turbante, com duas pontas caídas atrás.
Os foliões são em número variável, geralmente três: o "mestre", ou seja, aquele que "arma" cantigas e toca tambor; o porta-bandeira, que, tal como o nome indica, transporta, ao ombro, a bandeira, sendo esta encarnada, com o emblema do divino Paracleto ao centro, bordado a branco, e aos cantos a flor-de-lis na mesma cor, tendo no cimo da haste uma pomba branca de asas abertas); e o tocador de pandeiro ou pandeireta, ou ainda "testos" (sistros, pequenos pratos metálicos). Noutras ilhas eram (e são) utilizados o violão, a rabeca e os ferrinhos.
Vem tudo isto a propósito do disco "Foliões da Ilha Graciosa" (edição da Câmara Municipal de Santa Cruz da Graciosa, 2007) que acabo de ouvir neste Domingo de Espírito Santo. E só posso estar de acordo com aqueles etno-musicólogos que apontam a existência, nesses cânticos, de uma combinação do cantochão das igrejas com música de influência hispano-árabe. A última faixa do CD ("São Mateus, Pedras Brancas - Foliões no cortejo do Divino Espírito Santo") é disso um claro exemplo.
De igual modo os foliões do lugar das Fontes, da freguesia da Luz e os da irmandade de Santo António (Santa Cruz) são também herdeiros dessa longínqua tradição que ecoa da fundura dos tempos...
O "mestre" canta/improvisa cantigas que depois os outros repetem. São as "loas" e "alvoradas", arremedos de antigos "romances", cantadas em tom arrastado, lúgubre e monótono.
A melodia tem características modais, com efeitos ornamentais: mordentes, grupetos, portamentos e glissandos.
Menino e moço, enquanto vivi na Graciosa, habituei-me a ouvir e a respeitar os foliões e, mais tarde, apreciei em Juventino Ramos o exímio cantador e o inesquecível folião. Aprendi, com estes homens sábios, a essência do Espírito Santo: o culto da dádiva e da partilha. E tive a sorte de ter, como pároco, o incontornável padre José Simões Borges que sempre aceitou e respeitou esta manifestação de religiosidade popular e que, dentro e fora da Igreja, me ensinou que a sabedoria representa um dos sete dons do Espírito de Deus.
E é imbuído deste espírito de dádiva e de partilha que Jorge Santos, técnico da competência e da irmandade dos afectos, em duas visitas à ilha Graciosa (2002 e 2006) recolheu e gravou, para memória futura, os elementos fonográficos incluídos no referido disco.
Escutemos, nele, os foliões Manuel Florival Sousa e Silva, António Francisco Bettencourt da Silva, Elmiro Manuel da Cunha Mendonça (FONTES), Gabriel da Silva Arruda, Hélio Manuel Gil da Silva, Emanuel da Costa Silva (LUZ), Francisco Silva Costa, Juventino Ramos Correia. Luís Cunha Costa (SANTA CRUZ), Lusitano António da Silva Pereira, Higénio Teodoro da Silva Pais (SÃO MATEUS) por darem expressão e conteúdo a uma tradição ancestral que faz parte do nosso imaginário.
Uma palavra de apreço à Câmara Municipal de Santa Cruz da Graciosa pelo apoio que tem vindo a prestar às tradições musicais - que tanto valorizam e dignificam a "ilha branca".
Que seja tudo em honra e louvor do Divino Espírito Santo!
*Crónica de VICTOR RUI DORES